Fonte: Jornal Savana, Online
Em vida, Malangatana sempre carregou às costas a sua comunidade em Matalana, quer nos quadros que pintava quer nos projectos que concebia. Mas nunca a terra natal do idolatrado artista plástico Malangatana Valente Ngwenya foi centro das mais variadas atenções, incluindo as da imprensa. Aliás, é pela mão da imprensa que a pobre aldeia situada a cerca de 12 quilómetros da sede distrital de Marracuene percorre o mundo como o local de nascimento, mas também de eterno retorno do maior pintor moçambicano
Da cidade de Maputo à vila de Marracuene são aproximadamente 30 quilómetros de asfalto impecável. Ao cabo de mais sete quilómetros pela EN1 (Estrada Nacional Número 1) chega-se ao desvio para Matalana. Do desvio até à residência de Malangatana, são cerca de cinco quilómetros feitos em uma estreita estrada de terra batida que corta a savana tropical em solos arenosos. A pobreza da aldeia constata-se nas dispersas casas de construção precária e nas pequenas machambas cujo perímetro encerra várias culturas, com destaque para milho e amendoim.
Foi nesta Matalana que Malangatana nasceu e passou a sua infância. Foi esta aldeia que Malangatana globalizou nos seus quadros e nos seus discursos.
Foi esta Matalana que Malangatana escolheu para ser sepultado, um desejo que a família vai cumprir e o Estado vai respeitar.
Um velho desejo
Em vida, o mestre Malangatana sempre manifestou o desejo de ser sepultado na sua terra natal, lado a lado com os seus pais, no cemitério familiar. Logo após a sua morte, havia indicações de que o Estado, através do Governo, queria o corpo de Malangatana na cripta dos Heróis Moçambicanos. Não era para menos. O pintor passou pelas mais decisivas etapas oficiosamente evocadas na definição de herói moçambicano: Logo após o início da luta armada em Moçambique, Malangatana juntou-se à rede clandestina da FRELIMO, desenvolvendo actividades que levaram a PIDE a afirmar mais tarde que ele servia de cartaz de propaganda política antagónica à linha da administração ultramarina portuguesa, tendo sido preso por duas vezes pela polícia do estado (1966-68).
Malangatana não vai à cripta porque a família rei¬terou, depois da sua morte a 5 de Janeiro de 2011, a sua vontade de ser enterrado na terra natal.
Mesmo assim, o Estado assumiu todas as despesas inerentes às cerimónias fúnebres do multifacetado artista plástico.
O filho notável da rústica aldeia volta a casa e esta sexta-feira será sepultado a escassos 300 metros da sua residência e ao lado dos marcos que delimitam o perímetro da futura sede da fundação que leva o seu nome.
Matalana “mudou”
Na manhã desta terça-feira o SAVANA visitou a residência do mestre. A partir do desvio da EN1 descortinavam-se alguns sinais extraordinários no quotidiano de Matalana. Camiões transportando saibro para terraplanagem e material de construção faziam o vaivém na estreita rua de cerca de cinco quilómetros. O material era destinado à construção do monumento onde serão depositados os restos mortais de Malangatana. Devido à intensa circulação de viaturas, alguns troços da rua já dificultavam o trânsito. Camiões há que se enterravam e eram socorridos por uma máquina niveladora despachada para o local. Para além de rebocar camiões, a máquina niveladora fazia pequenas intervenções de melhoramento da via e terraplanava o troço de cerca de 300 metros que parte da residência de Malangatana até ao local onde será sepultado. Por decisão familiar, Malangatana não vai ser sepultado lado a lado com os pais no cemitério familiar que fica a cerca de dois quilómetros da sua residência. Como sempre manifestou em vida. No local ninguém soube explicar ao SAVANA as razões da alteração do local. Mas informações não confirmadas indicam que a família achou conveniente sepultar o ícone das artes plásticas ao pé da fundação que leva o seu nome.
“Ele será o guardião do futuro edifício da fundação”, conta José Ntila, 74 anos, amigo de longa data e construtor do mestre Malan¬gatana, apontando para o local onde será erguida a sede da Fundação Malan¬gatana.
Monumento em três dias?
Os trabalhos de construção do monumento iniciaram na tarde desta terça-feira, três dias antes do enterro. A equipa da Teixeira Duarte chegou ao local por volta das 11 horas. “O monumento deve estar entre as duas árvores, virada para o local onde será erguido o edifício sede da Fundação Malangatana”, disse o velho Ntila, em conversa com o responsável da obra. De nome Duarte, o responsável escuta as explicações do velho Ntila e logo de seguida procura, via telemóvel, a confirmação do arquitecto que desenhou a planta do monumento, este último na cidade de Maputo. Com o seu grupo de cerca de 15 trabalhadores, maioritariamente jovens, o responsável começa com as demarcações. Mas mais tarde viria a removê-los. Houve alterações. Paciente, o responsável volta a contactar o arquitecto. Há que ter a certeza de todos os detalhes, pois as informações sobre a posição da obra não coincidiam. As pessoas responsáveis, dentre elas o velho Ntila, davam uma informação contrária àquela que o responsável tinha recebido. Depois de mais de duas horas de concertações, finalmente as demarcações são fixadas. Isso por volta das 13 horas.
O responsável volta a contactar o arquitecto sobre as medidas da obra e os materiais a usar, em função do solo e inclinação do terreno. O velho Ntila desespera. Está preocupado com “o tempo”. “Falta muito pouco tempo, não sei se vão conseguir terminar”, disse, em conversa com o SAVANA.
Na verdade, a empresa que executa a obra tinha cerca de três dias para erguer o monumento pago pelo Estado.
É uma obra de grande envergadura do tamanho do mestre Malangatana.
Obras e projectos por terminar
Malangatana morreu numa altura em que tinha muitos projectos por concretizar. O Centro Cultural de Matalana, um projecto sócio-cultural que vinha sendo desenvolvido num espaço de 4000 metros quadrados, ainda não está a servir os propósitos para os quais fora concebido. “Usam para fazer espectáculos”, conta Celeste Victorino, 17 anos. Esta menor estava na residência do mestre na manhã desta terça-feira, onde a “dona Amélia”, sua mãe, é empregada doméstica. “Quando nasci minha mãe já trabalhava aqui”, conta. Celeste conheceu Malangatana ainda criança. Aliás, lembra que em 2002, ela e outras crianças, pintaram um quadro sob a orientação do “vovó Malangatana”. “Ele depois levou o quadro para Maputo”, contou, acrescentando que aquela foi a única vez que pintou com o mestre. Teve a informação sobre a morte do “vovó Malangatana” através da mãe. “Fiquei muito triste. Ele gostava de brincar com crianças, contando histórias e ensinando muitas coisas”, disse, sentado num banco do jardim.
No centro cultural, está por concluir um edifício multifacetado de formato circular com 30 metros de diâmetro, designado por atelier colectivo . Outro edifício, também circular tendo no centro um frondoso cajueiro, comporta um dormitório de cerca de 30 quartos. Este edifício está concluido, mas não há evidências de exploração. No projecto concebido pelo arquitecto José Forjaz, consta ainda uma cozinha, refeitório, sanitários e balneários. Com o centro, Malangatana pretendia, entre outras coisas, promover a conservação e divulgação dos usos e costumes da população local e oferecer oportunidades de formação em diferentes áreas, como corte e costura, serralharia, mecânica e carpintaria.
No perímetro do centro, pode se contemplar uma gigantesca obra inacabada do mestre. Segundo relatos no terreno, a obra em formato de pessoa seria um autoretrato de Malangatana.
Já na sua residência, ficou por concluir a enorme casa de T5, cuja planta foi projectada pelo arquitecto Forjaz. Segundo declarações do velho Ntila, construtor e amigo de Malangatana, a obra está quase concluída, faltando alguns detalhes. “Ele havia decidido que este ano iria entrar nesta casa”, conta Armando José Ntila, filho do velho Ntila.
A construção da casa começou nos finais da década de 90. Dentro da mesma, estão guardadas alguns quadros.
A construção da sede da Fundação Malangatana tinha sido prevista para Agosto de 2010. Não arrancou. No terreno (adjacente ao monumento ora em construção), estão apenas os marcos.
“Ele tinha dito que as obras iriam arrancar em Abril deste ano”, disse Armando, 36 anos, formado em construção civil pelo Instituto Industrial de Maputo. Ele trabalha com o pai na edificação das obras do mestre Malangatana. “Ele já provou que é bom. Foi ele quem fez a escola de música que fica no centro cultural de Matalana”, disse o pai Ntila, acres¬centando que “aquilo foi o seu teste de competência”.
Tanto o filho como o pai não sabem dizer qual será o destino das obras por concluir e outras por iniciar depois da morte do pintor Malangatana. “Tudo depende da família”, disse Armando Ntila, contando ainda que o “velho Malangatana tinha decidido que queria terminar tudo neste ano”.
Tanto a família como o Governo já manifestaram o desejo de dar continuidade aos projectos do famoso artista plástico.
Ntila, o amigo de Matalana
A amizade entre o velho Ntila e Malangatana começou na infância. José Ntila, 74 anos, nasceu em Macaneta, mas viria a passar a sua infância em Matalana, brincando com Malangatana. “Éramos tão amigos que algumas pessoas pensavam e ainda pensam que somos irmãos”, lembra. “Ele gostava muito de arte, ensinou-me a corrigir obras de arte”. Ntila fez muitas paredes que Malangatana pintou, desde o tempo colonial. “Ele me agarrou em toda a sua vida”. Obras de arte patentes na empresa MABOR, TDM, UNICEF, entre outras, foram feitas por Malangatana em colaboração com o velho Ntila.
O melhor amigo de Malangatana em Matalana não se lembra da última vez que estiveram juntos. Só sabe dizer que o último encontro foi antes da sua viagem para Portugal. “Quando foi para Portugal despediu-se e disse que não iria demorar”.
Já em Portugal, Malangatana falou duas vezes via telefone com Ntila. “A última vez que ele me ligou foi em Dezembro e disse-me que já estava melhor”.
A informação sobre a sua morte chegou-lhe através de conhecidos. “As pessoas vieram me informar e mais tarde acompanhei através da Rádio Moçambique”, disse.
Restos mortais vão hoje a enterrar
Familiares, amigos e membros do executivo aguardavam desde as primeiras horas da manhã pela chegada da urna contendo os restos mortais do artista plástico.
Depois de desembarcar de um avião da TAP, o corpo seguiu para a residência no bairro do Aeroporto para uma cerimónia familiar. De seguida, a urna foi transportada para os Paços do Conselho Municipal de Maputo para uma homenagem pública. Diferentes individualidades, entre governantes, artistas, membros do partido Frelimo, amigos e familiares, pres¬taram a última homenagem e assinaram o livro de condolências.
A cerimónia no edifício do Município de Maputo terminou por volta das 15 horas, tendo seguido depois para Matalana. Quinta-feira foi dedicado ao velório familiar. Hoje, sexta-feira, os restos mortais de Malangatana vão a enterrar, numa cerimónia que contará com a presença do Presidente da República, Armando Guebuza.
Para Matalana deslocaram-se milhares de pes¬soas para testemunhar o enterro do embondeiro das artes plásticas moçambicanas.
Biografia
Malangatana Valente Ngwenya nasceu em Matalana, distrito de Marracuene, Moçambique a 6 de Junho de 1936.
Frequentou a Escola da Missão Suiça em Matalana, onde aprendeu a ler e a escrever em ronga. Encerrada a escola protestante transita para a da Missão católica em Bulázi, onde conclui a terceira classe rudimentar e parte depois para Lourenço-Marques onde arranja emprego como criado de crianças. Foi “apanhador de bolas” e criado de mesa no Clube de Lourenço-Marques, frenquentado pela elite colonial.
A partir de 1959, descobertas as suas capacidades artísticas, Malangatana envereda por uma carreira de pintor profissional, com o apoio de Augusto Cabral e do arquitecto Miranda Guedes (Pancho), que lhe cedeu a garagem para atelier e lhe adquiria dois quadros por mês, para que se pudesse manter.
Em 1961, Malangatana realiza a sua 1ª exposição individual em Lourenço-Marques, na Associação dos Or¬ganismos Económicos.
Torna-se frequentador assíduo do Núcleo de Arte de Lourenço-Marques, onde contacta com os artistas da época e onde começa a mostrar os seus trabalhos de cariz eminentemente social.
Após o início da luta armada em Moçambique, Malangatana junta-se à rede clandestina da FRELIMO, desenvolvendo actividades que levaram a PIDE a afirmar mais tarde que Malangatana servia de cartaz de propaganda política antagónica à linha da admi¬nistração ultramarina portuguesa, tendo sido preso por duas vezes pela polícia do Estado (1966-68).
Em 1971, recebe uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian, para vir para Lisboa especializar-se em gravura. Trabalhou na Gravura Sociedade Cooperativa dos Gravadores Portugueses e, em cerâmica, na Fábrica de Cerâmica Viúva Lamego.
No mesmo ano, expõe na Livraria Bucholz e na Sociedade Nacional de Belas Artes.
Em 1973 vai à Suiça a convite de amigos, onde tem contactos com diferentes galerias e artistas, que lhe abrem novos horizontes.
Com a independência de Moçambique, Malangatana envolve-se directamente na actividade política, participando em acções de mobilização e alfabetização, sendo enviado para Nampula a fim de organizar as aldeias comunais.
Foi um dos criadores do Museu Nacional de Arte de Moçambique e convidado a criar o Centro de Estudos Culturais, actual Escola Nacional de Artes Visuais. Procurou manter e dinamizar o Núcleo de Arte (associacção que agrupa os artistas plásticos) e criou os núcleos dos artesãos das zonas verdes de Maputo.
Desenvolve intensa actividade no âmbito do Grupo Dinamizador do bairro do Aeroporto, onde reside, e participa em múltiplas actividades cívicas e sociais.
Intervém na organização da Escolinha dominical “Vamos Brincar”, promovida pela UNICEF. Na sequência é convidado para ir à Suécia (1987) participar em actividades similares com crianças suecas e refugiados de diversos paises.
Foi um dos criadores do Movimento para a Paz. Pertence à Direcção da Liga dos Escuteiros de Moçambique (LEMO), e é membro da Direcção da Associacção dos Amigos da Criança.
Foi deputado pela FRELIMO, de 1990 até às primeiras eleições multipartidárias, em 1994, a que não foi candidato. Em 1998 é eleito pela FRELIMO para a Assembleia Municipal de Maputo e em 2003 é nomeado vereador do Município pelo pelouro da Cultura, Desporto e Juventude.
Terminada a guerra civil em 1992, retomou o projecto cultural que impulsionara na sua aldeia de Matalana, surgindo assim a Associação do Centro Cultural de Matalana, de grande valor social e cívico, de que é o actual presidente.
Foi membro do júri para os Cartões de Boas Festas UNICEF, bem como de outros eventos de artes plásticas tanto em Moçambique como no estrangeiro. Vice-Comissário Nacional para a área da Cultura de Moçambique para a EXPO 98, Lisboa, e Hannover 2000, Alemanha.
A sua obra é reconhecida em todo o mundo, participando em múltiplas exposições individuais e colectivas, inte¬grando diversos júris em Moçambique e no estrangeiro bem como participando em múltiplos e diversos workshops.
Pintor, ceramista, cantor, actor, dançarino, Malangatana é uma presença assídua em numerosos festivais, afirmando sempre a sua origem africana e moçambicana.
Em 1996 e 2004 publica dois livros de poemas , que reunem a sua obra poética desde os anos sessenta. O último é ilustrado com vinte e quarto desenhos inéditos.
A 6 de Junho de 2006, é homenageado em Matalana por ocasião do seu 70º aniversário, sendo condecorado pelo presidente da República de Moçambique com a Ordem Eduardo Mondlane do 1º Grau, o mais alto galardão do país, em reconhecimento do trabalho desenvolvido não só nas artes plásticas mas também como o maior embaixador da cultura moçambicana. Nessa mesma data foi lançada a Fundação Malangatana Ngwe¬nya, com sede em Matalana, sua terra natal.
Em 2007, foi condecorado pelo governo francês com a distinção de Comendador das Artes e Letras.
Distinguido “Honoris Causa” pela Universidade Politécnica de Maputo, 2007 - 2010, Outorgado Honoris Causa pela Universidade de Évora.
A sua vida e obra tem sido objecto de vários filmes e documentários.
Está representado em vários Museus, por todo o mundo, bem como, em inúmeras colecções particulares.
Em vida, Malangatana sempre carregou às costas a sua comunidade em Matalana, quer nos quadros que pintava quer nos projectos que concebia. Mas nunca a terra natal do idolatrado artista plástico Malangatana Valente Ngwenya foi centro das mais variadas atenções, incluindo as da imprensa. Aliás, é pela mão da imprensa que a pobre aldeia situada a cerca de 12 quilómetros da sede distrital de Marracuene percorre o mundo como o local de nascimento, mas também de eterno retorno do maior pintor moçambicano
Da cidade de Maputo à vila de Marracuene são aproximadamente 30 quilómetros de asfalto impecável. Ao cabo de mais sete quilómetros pela EN1 (Estrada Nacional Número 1) chega-se ao desvio para Matalana. Do desvio até à residência de Malangatana, são cerca de cinco quilómetros feitos em uma estreita estrada de terra batida que corta a savana tropical em solos arenosos. A pobreza da aldeia constata-se nas dispersas casas de construção precária e nas pequenas machambas cujo perímetro encerra várias culturas, com destaque para milho e amendoim.
Foi nesta Matalana que Malangatana nasceu e passou a sua infância. Foi esta aldeia que Malangatana globalizou nos seus quadros e nos seus discursos.
Foi esta Matalana que Malangatana escolheu para ser sepultado, um desejo que a família vai cumprir e o Estado vai respeitar.
Um velho desejo
Em vida, o mestre Malangatana sempre manifestou o desejo de ser sepultado na sua terra natal, lado a lado com os seus pais, no cemitério familiar. Logo após a sua morte, havia indicações de que o Estado, através do Governo, queria o corpo de Malangatana na cripta dos Heróis Moçambicanos. Não era para menos. O pintor passou pelas mais decisivas etapas oficiosamente evocadas na definição de herói moçambicano: Logo após o início da luta armada em Moçambique, Malangatana juntou-se à rede clandestina da FRELIMO, desenvolvendo actividades que levaram a PIDE a afirmar mais tarde que ele servia de cartaz de propaganda política antagónica à linha da administração ultramarina portuguesa, tendo sido preso por duas vezes pela polícia do estado (1966-68).
Malangatana não vai à cripta porque a família rei¬terou, depois da sua morte a 5 de Janeiro de 2011, a sua vontade de ser enterrado na terra natal.
Mesmo assim, o Estado assumiu todas as despesas inerentes às cerimónias fúnebres do multifacetado artista plástico.
O filho notável da rústica aldeia volta a casa e esta sexta-feira será sepultado a escassos 300 metros da sua residência e ao lado dos marcos que delimitam o perímetro da futura sede da fundação que leva o seu nome.
Matalana “mudou”
Na manhã desta terça-feira o SAVANA visitou a residência do mestre. A partir do desvio da EN1 descortinavam-se alguns sinais extraordinários no quotidiano de Matalana. Camiões transportando saibro para terraplanagem e material de construção faziam o vaivém na estreita rua de cerca de cinco quilómetros. O material era destinado à construção do monumento onde serão depositados os restos mortais de Malangatana. Devido à intensa circulação de viaturas, alguns troços da rua já dificultavam o trânsito. Camiões há que se enterravam e eram socorridos por uma máquina niveladora despachada para o local. Para além de rebocar camiões, a máquina niveladora fazia pequenas intervenções de melhoramento da via e terraplanava o troço de cerca de 300 metros que parte da residência de Malangatana até ao local onde será sepultado. Por decisão familiar, Malangatana não vai ser sepultado lado a lado com os pais no cemitério familiar que fica a cerca de dois quilómetros da sua residência. Como sempre manifestou em vida. No local ninguém soube explicar ao SAVANA as razões da alteração do local. Mas informações não confirmadas indicam que a família achou conveniente sepultar o ícone das artes plásticas ao pé da fundação que leva o seu nome.
“Ele será o guardião do futuro edifício da fundação”, conta José Ntila, 74 anos, amigo de longa data e construtor do mestre Malan¬gatana, apontando para o local onde será erguida a sede da Fundação Malan¬gatana.
Monumento em três dias?
Os trabalhos de construção do monumento iniciaram na tarde desta terça-feira, três dias antes do enterro. A equipa da Teixeira Duarte chegou ao local por volta das 11 horas. “O monumento deve estar entre as duas árvores, virada para o local onde será erguido o edifício sede da Fundação Malangatana”, disse o velho Ntila, em conversa com o responsável da obra. De nome Duarte, o responsável escuta as explicações do velho Ntila e logo de seguida procura, via telemóvel, a confirmação do arquitecto que desenhou a planta do monumento, este último na cidade de Maputo. Com o seu grupo de cerca de 15 trabalhadores, maioritariamente jovens, o responsável começa com as demarcações. Mas mais tarde viria a removê-los. Houve alterações. Paciente, o responsável volta a contactar o arquitecto. Há que ter a certeza de todos os detalhes, pois as informações sobre a posição da obra não coincidiam. As pessoas responsáveis, dentre elas o velho Ntila, davam uma informação contrária àquela que o responsável tinha recebido. Depois de mais de duas horas de concertações, finalmente as demarcações são fixadas. Isso por volta das 13 horas.
O responsável volta a contactar o arquitecto sobre as medidas da obra e os materiais a usar, em função do solo e inclinação do terreno. O velho Ntila desespera. Está preocupado com “o tempo”. “Falta muito pouco tempo, não sei se vão conseguir terminar”, disse, em conversa com o SAVANA.
Na verdade, a empresa que executa a obra tinha cerca de três dias para erguer o monumento pago pelo Estado.
É uma obra de grande envergadura do tamanho do mestre Malangatana.
Obras e projectos por terminar
Malangatana morreu numa altura em que tinha muitos projectos por concretizar. O Centro Cultural de Matalana, um projecto sócio-cultural que vinha sendo desenvolvido num espaço de 4000 metros quadrados, ainda não está a servir os propósitos para os quais fora concebido. “Usam para fazer espectáculos”, conta Celeste Victorino, 17 anos. Esta menor estava na residência do mestre na manhã desta terça-feira, onde a “dona Amélia”, sua mãe, é empregada doméstica. “Quando nasci minha mãe já trabalhava aqui”, conta. Celeste conheceu Malangatana ainda criança. Aliás, lembra que em 2002, ela e outras crianças, pintaram um quadro sob a orientação do “vovó Malangatana”. “Ele depois levou o quadro para Maputo”, contou, acrescentando que aquela foi a única vez que pintou com o mestre. Teve a informação sobre a morte do “vovó Malangatana” através da mãe. “Fiquei muito triste. Ele gostava de brincar com crianças, contando histórias e ensinando muitas coisas”, disse, sentado num banco do jardim.
No centro cultural, está por concluir um edifício multifacetado de formato circular com 30 metros de diâmetro, designado por atelier colectivo . Outro edifício, também circular tendo no centro um frondoso cajueiro, comporta um dormitório de cerca de 30 quartos. Este edifício está concluido, mas não há evidências de exploração. No projecto concebido pelo arquitecto José Forjaz, consta ainda uma cozinha, refeitório, sanitários e balneários. Com o centro, Malangatana pretendia, entre outras coisas, promover a conservação e divulgação dos usos e costumes da população local e oferecer oportunidades de formação em diferentes áreas, como corte e costura, serralharia, mecânica e carpintaria.
No perímetro do centro, pode se contemplar uma gigantesca obra inacabada do mestre. Segundo relatos no terreno, a obra em formato de pessoa seria um autoretrato de Malangatana.
Já na sua residência, ficou por concluir a enorme casa de T5, cuja planta foi projectada pelo arquitecto Forjaz. Segundo declarações do velho Ntila, construtor e amigo de Malangatana, a obra está quase concluída, faltando alguns detalhes. “Ele havia decidido que este ano iria entrar nesta casa”, conta Armando José Ntila, filho do velho Ntila.
A construção da casa começou nos finais da década de 90. Dentro da mesma, estão guardadas alguns quadros.
A construção da sede da Fundação Malangatana tinha sido prevista para Agosto de 2010. Não arrancou. No terreno (adjacente ao monumento ora em construção), estão apenas os marcos.
“Ele tinha dito que as obras iriam arrancar em Abril deste ano”, disse Armando, 36 anos, formado em construção civil pelo Instituto Industrial de Maputo. Ele trabalha com o pai na edificação das obras do mestre Malangatana. “Ele já provou que é bom. Foi ele quem fez a escola de música que fica no centro cultural de Matalana”, disse o pai Ntila, acres¬centando que “aquilo foi o seu teste de competência”.
Tanto o filho como o pai não sabem dizer qual será o destino das obras por concluir e outras por iniciar depois da morte do pintor Malangatana. “Tudo depende da família”, disse Armando Ntila, contando ainda que o “velho Malangatana tinha decidido que queria terminar tudo neste ano”.
Tanto a família como o Governo já manifestaram o desejo de dar continuidade aos projectos do famoso artista plástico.
Ntila, o amigo de Matalana
A amizade entre o velho Ntila e Malangatana começou na infância. José Ntila, 74 anos, nasceu em Macaneta, mas viria a passar a sua infância em Matalana, brincando com Malangatana. “Éramos tão amigos que algumas pessoas pensavam e ainda pensam que somos irmãos”, lembra. “Ele gostava muito de arte, ensinou-me a corrigir obras de arte”. Ntila fez muitas paredes que Malangatana pintou, desde o tempo colonial. “Ele me agarrou em toda a sua vida”. Obras de arte patentes na empresa MABOR, TDM, UNICEF, entre outras, foram feitas por Malangatana em colaboração com o velho Ntila.
O melhor amigo de Malangatana em Matalana não se lembra da última vez que estiveram juntos. Só sabe dizer que o último encontro foi antes da sua viagem para Portugal. “Quando foi para Portugal despediu-se e disse que não iria demorar”.
Já em Portugal, Malangatana falou duas vezes via telefone com Ntila. “A última vez que ele me ligou foi em Dezembro e disse-me que já estava melhor”.
A informação sobre a sua morte chegou-lhe através de conhecidos. “As pessoas vieram me informar e mais tarde acompanhei através da Rádio Moçambique”, disse.
Restos mortais vão hoje a enterrar
Familiares, amigos e membros do executivo aguardavam desde as primeiras horas da manhã pela chegada da urna contendo os restos mortais do artista plástico.
Depois de desembarcar de um avião da TAP, o corpo seguiu para a residência no bairro do Aeroporto para uma cerimónia familiar. De seguida, a urna foi transportada para os Paços do Conselho Municipal de Maputo para uma homenagem pública. Diferentes individualidades, entre governantes, artistas, membros do partido Frelimo, amigos e familiares, pres¬taram a última homenagem e assinaram o livro de condolências.
A cerimónia no edifício do Município de Maputo terminou por volta das 15 horas, tendo seguido depois para Matalana. Quinta-feira foi dedicado ao velório familiar. Hoje, sexta-feira, os restos mortais de Malangatana vão a enterrar, numa cerimónia que contará com a presença do Presidente da República, Armando Guebuza.
Para Matalana deslocaram-se milhares de pes¬soas para testemunhar o enterro do embondeiro das artes plásticas moçambicanas.
Biografia
Malangatana Valente Ngwenya nasceu em Matalana, distrito de Marracuene, Moçambique a 6 de Junho de 1936.
Frequentou a Escola da Missão Suiça em Matalana, onde aprendeu a ler e a escrever em ronga. Encerrada a escola protestante transita para a da Missão católica em Bulázi, onde conclui a terceira classe rudimentar e parte depois para Lourenço-Marques onde arranja emprego como criado de crianças. Foi “apanhador de bolas” e criado de mesa no Clube de Lourenço-Marques, frenquentado pela elite colonial.
A partir de 1959, descobertas as suas capacidades artísticas, Malangatana envereda por uma carreira de pintor profissional, com o apoio de Augusto Cabral e do arquitecto Miranda Guedes (Pancho), que lhe cedeu a garagem para atelier e lhe adquiria dois quadros por mês, para que se pudesse manter.
Em 1961, Malangatana realiza a sua 1ª exposição individual em Lourenço-Marques, na Associação dos Or¬ganismos Económicos.
Torna-se frequentador assíduo do Núcleo de Arte de Lourenço-Marques, onde contacta com os artistas da época e onde começa a mostrar os seus trabalhos de cariz eminentemente social.
Após o início da luta armada em Moçambique, Malangatana junta-se à rede clandestina da FRELIMO, desenvolvendo actividades que levaram a PIDE a afirmar mais tarde que Malangatana servia de cartaz de propaganda política antagónica à linha da admi¬nistração ultramarina portuguesa, tendo sido preso por duas vezes pela polícia do Estado (1966-68).
Em 1971, recebe uma bolsa da Fundação Calouste Gulbenkian, para vir para Lisboa especializar-se em gravura. Trabalhou na Gravura Sociedade Cooperativa dos Gravadores Portugueses e, em cerâmica, na Fábrica de Cerâmica Viúva Lamego.
No mesmo ano, expõe na Livraria Bucholz e na Sociedade Nacional de Belas Artes.
Em 1973 vai à Suiça a convite de amigos, onde tem contactos com diferentes galerias e artistas, que lhe abrem novos horizontes.
Com a independência de Moçambique, Malangatana envolve-se directamente na actividade política, participando em acções de mobilização e alfabetização, sendo enviado para Nampula a fim de organizar as aldeias comunais.
Foi um dos criadores do Museu Nacional de Arte de Moçambique e convidado a criar o Centro de Estudos Culturais, actual Escola Nacional de Artes Visuais. Procurou manter e dinamizar o Núcleo de Arte (associacção que agrupa os artistas plásticos) e criou os núcleos dos artesãos das zonas verdes de Maputo.
Desenvolve intensa actividade no âmbito do Grupo Dinamizador do bairro do Aeroporto, onde reside, e participa em múltiplas actividades cívicas e sociais.
Intervém na organização da Escolinha dominical “Vamos Brincar”, promovida pela UNICEF. Na sequência é convidado para ir à Suécia (1987) participar em actividades similares com crianças suecas e refugiados de diversos paises.
Foi um dos criadores do Movimento para a Paz. Pertence à Direcção da Liga dos Escuteiros de Moçambique (LEMO), e é membro da Direcção da Associacção dos Amigos da Criança.
Foi deputado pela FRELIMO, de 1990 até às primeiras eleições multipartidárias, em 1994, a que não foi candidato. Em 1998 é eleito pela FRELIMO para a Assembleia Municipal de Maputo e em 2003 é nomeado vereador do Município pelo pelouro da Cultura, Desporto e Juventude.
Terminada a guerra civil em 1992, retomou o projecto cultural que impulsionara na sua aldeia de Matalana, surgindo assim a Associação do Centro Cultural de Matalana, de grande valor social e cívico, de que é o actual presidente.
Foi membro do júri para os Cartões de Boas Festas UNICEF, bem como de outros eventos de artes plásticas tanto em Moçambique como no estrangeiro. Vice-Comissário Nacional para a área da Cultura de Moçambique para a EXPO 98, Lisboa, e Hannover 2000, Alemanha.
A sua obra é reconhecida em todo o mundo, participando em múltiplas exposições individuais e colectivas, inte¬grando diversos júris em Moçambique e no estrangeiro bem como participando em múltiplos e diversos workshops.
Pintor, ceramista, cantor, actor, dançarino, Malangatana é uma presença assídua em numerosos festivais, afirmando sempre a sua origem africana e moçambicana.
Em 1996 e 2004 publica dois livros de poemas , que reunem a sua obra poética desde os anos sessenta. O último é ilustrado com vinte e quarto desenhos inéditos.
A 6 de Junho de 2006, é homenageado em Matalana por ocasião do seu 70º aniversário, sendo condecorado pelo presidente da República de Moçambique com a Ordem Eduardo Mondlane do 1º Grau, o mais alto galardão do país, em reconhecimento do trabalho desenvolvido não só nas artes plásticas mas também como o maior embaixador da cultura moçambicana. Nessa mesma data foi lançada a Fundação Malangatana Ngwe¬nya, com sede em Matalana, sua terra natal.
Em 2007, foi condecorado pelo governo francês com a distinção de Comendador das Artes e Letras.
Distinguido “Honoris Causa” pela Universidade Politécnica de Maputo, 2007 - 2010, Outorgado Honoris Causa pela Universidade de Évora.
A sua vida e obra tem sido objecto de vários filmes e documentários.
Está representado em vários Museus, por todo o mundo, bem como, em inúmeras colecções particulares.
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